Releitura - Ferreira Gullar

Watercolour by Tara Chklovski
Homem Comum

Sou um homem comum
          de carne e de memória
          de osso e esquecimento.
e a vida sopra dentro de mim
          pânica
          feito a chama de um maçarico
e pode
subitamente
          cessar.

Sou como você
          feito de coisas lembradas
          e esquecidas
          rostos e
          mãos, o quarda-sol vermelho ao meio-dia
          em Pastos-Bons
          defuntas alegrias flores passarinhos
          facho de tarde luminosa
          nomes que já nem sei
          bandejas bandeiras bananeiras
                          tudo
          misturado
                essa lenha perfumada
          que se acende
          e me faz caminhar
Sou um homem comum
          brasileiro, maior, casado, reservista,
          e não vejo na vida, amigo,
          nenhum sentido, senão
          lutarmos juntos por um mundo melhor.
Poeta fui de rápido destino.
Mas a poesia é rara e não comove
nem move o pau-de-arara.
          Quero, por isso, falar com você,
          de homem para homem,
          apoiar-me em você
          oferecer-lhe o meu braço
                que o tempo é pouco
                e o latifúndio está aí, matando.

Que o tempo é pouco
e aí estão o Chase Bank,
a IT & T, a Bond and Share,
a Wilson, a Hanna, a Anderson Clayton,
e sabe-se lá quantos outros
braços do polvo a nos sugar a vida
e a bolsa
          Homem comum, igual
          a você,
cruzo a Avenida sob a pressão do imperialismo.
          A sombra do latifúndio
          mancha a paisagem
          turva as águas do mar
          e a infância nos volta
          à boca, amarga,
          suja de lama e de fome.

Mas somos muitos milhões de homens
          comuns
          e podemos formar uma muralha
          com nossos corpos de sonho e margaridas.

(Brasília, 1963)